Kabir, o motorista


Os jipes começaram a chegar, estacionando em fila à frente da porta do hotel. Os motoristas juntavam-se e conversavam uns com os outros, enquanto aguardavam ordens sobre a caravana. 

O deserto!... Adoro as areias do deserto! Elas têm uma coloração quente e suave, como as suas curvas e ondulações, formando formas e sombras que brincam com a luz. Há no deserto um carisma exótico muito forte, que me atrai de uma maneira avassaladora. 

Vinham todos vestidos com jeans e uma t-shirt azul com o "logo" da empresa. E é claro, todos asiáticos. Comecei a observá-los um a um e descobri um sem a farda da empresa. Era árabe e envergava as vestes tradicionais. Depois de ter ouvido alguém pronunciar o seu nome, cheguei ao pé dele e perguntei-lhe qual era o carro dele. Olhou para mim e sorriu, um sorriso que não saía do rosto... parecia que estava hipnotizado. Pensei "será que não me entendeu?"... Voltei a perguntar "Amin, qual é o teu jipe? Quero ir contigo".

O sorriso de Amin continuava e olhava-me como se eu fosse uma espécie rara. Comecei também a sorrir  e ele fez sinal que sim com a cabeça. O que quereria ele dizer com aquele "sim"?... Baixou ligeiramente a cabeça e numa espécie de vénia, esticou um braço e abrindo a mão com a palma virada para cima começou a andar, insinuando-me a segui-lo. E sempre com aquele sorriso que já começava a ficar meio amarelo, chegou ao pé de um dos jipes e abriu a porta do lado oposto ao condutor para eu entrar. Fechou a porta, deu meia volta e foi-se sentar ao volante. Virei-me para ele, já arrependida de o ter escolhido para me conduzir ao deserto, mas ele continuava olhando para mim de sorriso renovado. Parecia um tonto. A única coisa que ele fazia era sorrir, sorrir pateticamente, enquanto me olhava de um jeito meio idiota. "Raios partam o sujeito", pensei.
 

Nesse instante alguém abriu a porta, falou qualquer coisa que não percebi e ele saiu, deixando entrar um outro que vestia a farda. Era um rapaz novo, à volta dos trinta anos e percebi imediatamente que era indiano. Disse-me em inglês, que estavam a distribuir as pessoas em grupos e a dizer-lhes onde deveriam entrar. Falei-lhe em urdo/hindy, dizendo-lhe que queria ir com ele. Olhou para mim admirado e começou por perguntar onde tinha aprendido o idioma. Respondi-lhe que iria com ele e lhe contaria pelo caminho. Saiu rapidamente, bateu a porta e metendo a cabeça na janela do jipe, disse-me que não precisava de sair, era o jipe dele. "Óptimo", pensei, "estou em casa". O tonto do árabe, andava por ali às voltas, todos brincando com ele e afinal ele nem era condutor. Estava explicado. 

Kabir tinha muito boa figura, um porte robusto, atlético e era todo desenrascado. No jipe, além de nós, iam mais cinco mulheres e um homem. Formavam sempre o mesmo grupo. Eram amigos e parecia que viajavam bastante. Estavam todos na faixa etária dos cinquenta, como eu e eram bastante divertidos. Kabir e eu conversámos durante todo o tempo. Fazíamos perguntas um ao outro e ríamos. Contei-lhe então porque falava urdo e ele quis saber toda a minha história com o Riaz, que achou muito interessante. E durante todo o caminho fazia perguntas de toda a ordem, relacionadas com a minha vida com o Riaz. Na parte de trás do jipe alguém comentava "ela sabe falar a língua dele(!)" ou "o que será que eles falam(?)" E eu ouvia, mas fingia que não tinha ouvido. 

O caminho foi longo, mas bem curtido e finalmente chegámos ao deserto. Que delícia! O deserto... chamando por mim. Lá estavam as dunas maravilhosas onde só apetecia passar a mão pela superfície lisinha e contorná-la vagarosamente. A caravana formou fila e lá fomos nós deserto adentro. O nosso jipe era o último, pelo que dava para ver o serpentear da fila abaixo e acima, escolhendo e abrindo o caminho. Kabir perguntou se queríamos mais ou menos emoção. Algumas mulheres gritavam "mais(!)", outras "menos(!)". Estavam histéricas e cada vez mais agitadas. Ele perguntou-me se eu tinha medo e eu disse-lhe que por mim podia fazer o que quisesse que eu não tinha medo dos desníveis e além disso confiava nele, que me parecia bastante seguro e talhado para aquilo. Foi o que ele quis ouvir. Deixámos os outros e fizemos o nosso percurso no maior agito, com uma barulheira de todo o tamanho. A páginas tantas avistámos um jipe que não era do nosso grupo, mas estava atolado na areia e não conseguia sair de maneira nenhuma. Kabir aproximou-se, disse para nos deixarmos ficar que ele ia ajudar o companheiro. Tirou umas cordas grossas que prendeu no jipe, puxou o outro e com a ajuda de tábuas que colocou junto à roda, o jipe conseguiu sair do buraco. E o nosso percurso continuou, mas por conta desse incidente fomos os últimos a chegar ao acampamento. 

Juntámo-nos aos outros e fomos curtir o deserto com todos os seus encantos e mistérios. Barbecue, danças e dançarinos e vários espectáculos. As danças orientais estavam maravilhosas e era noite de lua cheia, que deu a tudo um realce especial. Iniciámos o percurso a seguir ao almoço, mas agora era tarde, muito tarde e estávamos todos cansados, embora muito bem dispostos. A noite ia alta e tínhamos que regressar. Fora do acampamento a noite era escura. No deserto não há candeeiros. Em compensação, o céu é ímpar. Cravejado de estrelas, é um verdadeiro esplendor. Lindo, lindo! 

E todos se encaminharam para os respectivos jipes. Um a um, começaram a partir, rumo à cidade. E o nosso que não aparecia!? Juntei-me ao grupo e ninguém sabia onde estava o nosso jipe e muito menos o motorista. Além disso era noite escura e eles eram todos iguais. O mesmo tom de pele, os mesmos olhos escuros e as mesmas t-shirts. Aguardávamos na esperança de aparecer um jipe a buscar-nos, alguém que nos chamasse, o que acontecia com os outros grupos, mas não connosco. E eu pensava "onde se terá metido o Kabir?" E o deserto ia ficando cada vez mais deserto e cada vez oferecia menos possibilidades de ele aparecer com o jipe. Estava tudo a desaparecer e o deserto a ficar maior. 

As mulheres todas juntinhas, agarradas umas às outras e o homem calado, sem dizer nada. Devia estar à espera que as mulheres agissem. Mas elas todas aprumadinhas, no salto, com os cabelos todos arranjados, cochichavam, sussurravam... um pouco apreensivas, com um ar de desprotegidas da sorte. Pensei que tinha que ver o que é que se estaria a passar e afastei-me delas à procura do nosso motorista. "Kabir, onde estás? Kabir? E à medida que ia andando, carregando o peso das areias, pensava que não era possível terem-nos deixado ali. Ele havia de estar em algum sítio. Olhei para trás e percebi que as mulheres se tinham acalmado e todas olhavam na minha direcção, caladas, na expectativa de que eu as tirasse dali. E murmuravam "ela vai encontrá-lo", enquanto eu me enterrava na areia, arrastando em cada pé quilos de deserto e de cansaço. E de repente avisto uma luz atrás de uns arbustos. Vou-me aproximando e percebo que é um carro. Ouço vozes baixas e penso "que será que se está a passar?" E chego perto e percebo que tem alguém sentado ao volante e outra pessoa do lado de fora, agachada, com a porta aberta. E penso, vou perguntar por ele. "Kabir!" 

Os dois rapazes viraram-se para mim. O que estava agachado despediu-se e desapareceu e o que estava ao volante disse em hindy "entra, vamos". E eu voltei a perguntar "Kabir? És tu?" Ele olhou para mim e com uma entoação de gracejo respondeu "já não te lembras de mim?" Fiquei meio sem jeito e até envergonhada, mas respondi-lhe a verdade. Durante todo o tempo ele estava com óculos escuros que lhe escondiam os olhos e uma boa parte do rosto. É verdade que conversámos durante todo o tempo e não tinha sido pouco. Mas também era verdade que eu não o tinha visto sem óculos, nem uma única vez. E na escuridão da noite, sem os óculos escuros, realmente não o reconheci, apenas a voz dele o confirmou. E lá seguimos então para ir buscar os outros que ficaram todos contentes e aliviados. 

Já com os outros todos no jipe, deu uma risada, quase gargalhada e num tom meio brincadeira, meio irónico, disse: "Qualquer mulher no mundo podia dizer que não me reconhecia. Tu não. Tu tinhas obrigação de me reconhecer em qualquer situação." 

Primeiro fiquei perplexa, sem palavras e sem pensamentos. Mas logo percebi onde ele queria chegar. Durante todo o caminho fizemos confidências das nossas vidas privadas um ao outro, da minha parte bastante pormenorizadas do meu relacionamento de sete anos com um muçulmano, a que ele achou muito interessante e muito corajoso da minha parte, facto que mostrou por parte dele uma rara abertura de espírito. Aquele jovem que tinha a idade do meu filho, por tanta franqueza e facilidade de expressão, sentiu uma proximidade de alma muito grande, ligando-nos subitamente, independentemente da diferença das nossas idades cronológicas. Caminhámos juntos, por algum tempo, indiferentes às distâncias do próprio tempo, encontrando-nos assim no mesmo espaço. E isso lhe deu o direito de me fazer sentir sua irmã de alma, irmã de vida. 

"Qualquer outra"... porque nunca ninguém tinha falado com ele de igual para igual, sem barreira de idade, sexo ou religião. Até o mesmo idioma nos tinha ligado. Por isso ele dizia: "Tu... não". Estava implícito: tu és diferente. Tu és a excepção. A única que tinha obrigação de me reconhecer, em qualquer situação.

 

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